Face de uma casa nas cercanias do Parque do Itaimbezinho: as tábuas, as venezianas, o reflexo da paisagem, tudo é pinheiro, araucária. / Fotografias de Daniel Herrera.

MORADORES TRADICIONAIS
Carlos Delphim

"O amor é quando a gente mora um no outro."
              Mário Quintana

A legislação que criou as unidades de conservação no Brasil inspirou-se em modelos de países onde a natureza é muito menos rica e diversificada do que a brasileira, com um povo com maior propensão a práticas mais desgastantes de exploração dos recursos naturais. O modelo adotado em países sul-americanos para a criação de parques nacionais foi o pioneiramente adotado pelo Parque Nacional de Yellowstone nos Estados Unidos, em 1872. Se, por um lado, essa iniciativa tornou-se um marco na defesa dos recursos naturais contra as atividades humanas degradadoras, por outro lado prestou-se à dissociação entre homem e natureza.

No Brasil, os moradores tradicionais de áreas decretadas como unidades de conservação, mantém com suas propriedades uma relação na maior parte das vezes equilibrada. A prática de desapropriação de suas terras, com uma indenização muito aquém de seu valor venal, para um intenso uso turístico, é responsável por desequilíbrios mais graves do que a manutenção dos proprietários originais nessas terras. Certamente há alguns que têm uma relação predatória com a natureza, por praticarem atividades como caça e extração de lenha e madeira de forma exagerada. No entanto, aqueles que não ultrapassam os limites exigidos pelo consumo de uma família, em nada afetam os recursos que se pretende proteger.

Limitações ao uso de terras, assim como para terrenos e edificações urbanas, devem garantir a posse aos proprietários. No entanto, as terras dos parques e reservas naturais são desapropriadas para sua preservação. A propriedade privada, considerada pela Constituição da República Federativa como um direito fundamental, assegura as vantagens de usar, gozar e dispor de um bem. Por ser uma função social, reduz sensivelmente a interferência do Poder Público nos direitos perpétuos, que é o de transmissão aos herdeiros, e exclusivos.

Se a propriedade é um direito constitucional, por que o Poder Público cuida, de forma autoritária, de impor restrições e exagerados condicionamentos a seu uso, gozo e disposição? Por que tanto se ocupa em tomá-la de seu dono ao criar uma unidade de conservação? Bastaria que o dono obedecesse às imposições que sobre ela recaem ou que se estabelecesse um pacto no qual ele cumpra as determinações que incidem sobre suas terras. Todo ato compulsório pode ser substituído por um acordo que atenda às duas partes, tornando o proprietário que violar sua função social sujeito a sanções.

Existem reservas e parques criados com as mais diversas finalidades, como, por exemplo, para fins científicos. Todas, contudo, excluem o homem, privilegiando a biodiversidade e excluindo a pluralidade cultural, tão importante quanto a diversidade biológica. Pluralidade cultural e biodiversidade: dois conceitos que se complementam. Cada povo, cada comunidade detém fazeres e saberes decorrentes das diferentes expressões culturais existentes na sociedade e dos recursos oferecidos pela natureza. Cada povo, cada comunidade possui valores, formas de apreender o mundo, de entendê-lo, de determinar diferentes maneiras de agir, sobretudo de uso dos recursos da natureza em ocorrências como o folclore, a culinária, a música, festejos e outras manifestações.

De nada adianta proteger a natureza sem proteger, simetricamente, o conhecimento que o homem detém sobre seus recursos. O que para um botânico é uma espécie de um gênero de uma família, para os moradores tradicionais é um medicamento, um alimento, um corante, uma erva utilizada para afugentar mosquitos e até mesmo para exorcizar maus espíritos. Essas práticas variam de região para região, de ecossistema para ecossistema, de propriedades rurais para propriedades rurais, de família para família. Aos conhecimentos nativos vão se somando o de imigrantes, que os trazem de suas terras de origem e que vão se somando aos dos autóctones. Da soma dessa pluralidade de informações advém um saber puramente nacional. 

A criação de unidades de conservação praticada de forma autoritária, faz com que populações tradicionais que vivem em áreas protegidas pela legislação ambiental sejam deslocadas dos ambientes onde sempre moraram. Suas propriedades são desapropriadas, recebem indenizações insuficientes para uma vida digna nas cidades para onde se deslocam e onde a condição de lavrador é substituída por atividades indignas, quando comparada à anterior. Políticos que apregoavam a fixação do homem à terra, tão logo se elegem, passam a se valer dos migrantes que deixam suas propriedades em estados mais desprovidos, vindo exercer funções inferiores e morar em favelas nas metrópoles. Para o político torna-se mais fácil não cumprir o prometido e dispor de uma maior concentração de eleitores em áreas de risco.

Os camponeses que não aceitam deixar suas propriedades, transferindo-se para as cidades, passam a viver sob a pressão de perder suas terras. Ocorre que nem todos exercem um uso danoso dos recursos naturais. Ao contrário, graças a eles, as terras preservaram a integridade que justificou a declaração como unidade de conservação.

Por que expulsar quem - melhor do que qualquer burocrata, acadêmico, vigilante, servidor público ou terceirizado - melhor conhece, preserva e se utiliza daquilo que a natureza pode oferecer? A família que abandonou o entorno de um parque nacional cuidava melhor dessas terras do que esses funcionários. Em seguida surge o impacto da multidão de intrusos, os turistas e visitantes, estranhos que são acolhidos com todas as honras pois pagam para ali entrar. O ressarcimento oferecido aos desalojados, é insuficiente para adquirir uma moradia decente nas cidades grandes. Enquanto uma pequena família se muda, a unidade de conservação trata de substituir os antigos proprietários por dezenas de guardas florestais, guias turísticos, veículos, grupos de visitantes, enfim, uma multidão com muito maior potencial de danos do que poderia exercer uma modesta família rural. Gostaria de saber quantos funcionários dispõe o Parque Nacional de Aparados da Serra e quantos irão trabalhar nas terras de cada desapropriado.

Muitos pesquisadores acadêmicos se utilizam de saberes tradicionais dos nativos para elaboração de dissertações e teses que ninguém lê. Muitas vezes sequer revelam a fonte e os créditos de seus verdadeiros orientadores. Quantas coisas desconhecemos na relação com o mundo natural? Sequer fruímos os mistérios da noite, contemplamos as estrelas em seu deslocamento pelos céus, perdemos o sentimento do sagrado diante dos segredos do dia e da noite. Não acompanhamos as mudanças oferecidas pelas horas do dia, pelo nascer do sol, pelo ocaso, não olhamos os pássaros em voo, não aspiramos o ar puro embalsamado pelo perfume das flores. Compramos frutas e verduras tratadas com agrotóxicos, remexidas por uma infinidade de mãos de transportadores, empregados e fregueses em supermercados, geladas, enquanto os moradores do campo as colhem com a temperatura do ar, umedecidas pelo orvalho. Visitantes de um parque nacional consomem o que ali existe de mais excepcional e facilmente perceptível, mas quem ali vive, convive intimamente com os fenômenos naturais: sabe se vai chover, se vai fazer frio ou calor, não precisam de relógios para saber as horas, não tendo relógio, têm tempo...

Escrevo este texto em apoio à reinvindicação da família da Schefer Klippel da Silva, que há anos vem lutando pela posse de uma terra que sempre lhe pertenceu. Ninguém cuida melhor da terra do que seus proprietários, como tão bem expressa o ditado: o olho do dono é que engorda o porco. Sobretudo se foi legada pelos pais que a herdaram dos avós, que as receberam.... Conheci esta família: os avós, os filhos, genros e a netinha. Eles desempenham um importante papel, ao prestarem serviços que o Parque Nacional dos Aparados da Serra não oferece. Em sua casa, como em genuíno convívio de ágape, conheci o delicioso pastel de pinhões, depois de ter andado muito tempo morto de fome. Tão generosos e hospitaleiros eram o senhor Antônio e a senhora Maribel Edira que, já se aproximando o pôr-do-sol, vendo minha dificuldade motora ao caminhar, convidaram-me para pousar em sua casa.

Ambientes da casa da família Klippel. Conversa com Maribel Edira Klippel da Silva; junto ao fogão à lenha está Eraldo Klippel, irmão de Maribel.

No aconchego dessa casa brinquei com as duas cachorrinhas da família que comiam as migalhas dos pastéis que caiam pelo chão. Vi vacas e cavalos, algo mais encantador para a alma de uma criança do que o deslumbramento de um panorama em escala ciclópica. Isso porque os animais domésticos são realidades palpáveis e não espécies da fauna nativa meramente contempláveis, quando passíveis de serem vistas pelo visitante. Nós brasileiros, somos quase todos cristãos. Nosso Deus é o amor, o puro amor, o amor onímodo, o amor por todas as criaturas, como nos ensinou Francisco de Assis.

Quem, em nome da conservação da natureza, consegue ter um coração tão frio e impiedoso a ponto de expulsar da casa construída com o suor e o sonho de descendentes de povos formadores de nossa sociedade esses seres inofensivos? Mesmos povos europeus mais impiedosos do que os brasileiros têm uma legislação que não exclui a consideração pelo próximo: invasores ilegais nunca podem ser despejados durante o inverno. Como pode alguém chegar de outras paragens dando-se ao direito de tomar o que uma família de honestos trabalhadores construiu e manteve, vencendo todas as dificuldades? A esses, não lhes interessa para que plagas irão esses enxotados, só lhes importa bani-los sem nada ter a ver com seu futuro. Só lhes incumbe expulsá-los, como se eles fossem invasores de propriedades alheias.

Área urbana de Cambará do Sul, nos Campos de Cima da Serra. Nos processos migratórios, a cidade conecta-se à região de influência de Caxias do Sul, pólo industrial da Serra Gaúcha, distante 135 quilômetros.

Seja onde forem, não serão recebidos com o calor humano que nos foi concedido no pouco tempo em que permanecemos em sua casa. Uma casa de madeira, de araucária, um perfeito exemplo de arquitetura vernacular, construídas com técnicas e materiais locais, um modelo digno de ser protegido pelos órgãos culturais, contudo, condenado à demolição pelos ambientalistas e ecologistas em cumprimento a uma lei paradoxal. Abre em nome da lei. Em nome de que lei? Acaso lei sem nome? Em nome de que nome cujo agora me some se em sonho o soletrei? Abre em nome do rei. (Carlos Drummond de Andrade)

Durante mais de duas décadas representei, inicialmente, o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o IPHAN, no Conselho Nacional do Meio Ambiente, o CONAMA. Após a criação do Ministério da Cultura, passei a representar esse novo Ministério. Enquanto atuei como Conselheiro, defendi o patrimônio cultural e natural, mantendo uma visão integradora entre cultura e natureza, duas dimensões indestacáveis do patrimônio. Se posso legar aos pósteros alguma contribuição positiva, que seja esta: o homem que vive em sua terra, em sua casa, em equilíbrio com a natureza, é parte desta natureza. Melhor do que ninguém, ele a defenderá, dela cuidará, procurará legá-la, senão de forma igual à que a recebeu, a suas crianças, a seus descendentes...

Casa dos Klippel, no Parque do Itaimbezinho: a família recebe a visita de Carlos Delphim (ao centro, de pé), André Costantin (na janela) e Daniel Herrera (o fotógrafo).
Vejo o Retiro, suspiro no vale fundo, Retiro ficava longe do oceanomundo (...)
O amor das éguas rinchava no azul do pasto.
(...) E criação e gente, em liga, tudo era casto
Carlos Drummond de Andrade

Rogo às autoridades que defendem o desalmado propósito de desagregar, desalojar e expulsar os Schefer Klippel da Silva de seu habitat tradicional, que revejam sua desumana decisão, que consultem seus corações antes de se fazer cumprir leis despóticas que atentam contra a piedade. Seriam os ecólogos capazes de expulsar uma família de zorrilhos de suas tocas, de seu território? Enxotar as curicacas de seus ninhos nos pinheiros, derrubar casas de marimbondo?

Ana Caroline Klippel Ramos, filha de Alessandra Klippel e neta de Maribel.

A menininha da família, Ana Caroline, ouvia amedrontada, a narração que a avó fazia sobre uma entidade fantasmagórica da qual falam os habitantes dos Peraus, jurando não ser fictício, porém verdadeiro, o Gritador. A senhora descreveu o horripilante brado que a espectral criatura emitia, sem ser vista, pois só pode ser ouvida. Um urro que vinha se aproximando e que nada se podia fazer para esconjurá-lo. Perguntei a Ana Caroline se ela tinha medo da terrível aparição e ela respondeu-me erguendo os ombros para cima como se um frêmito horripilante a percorresse. Que destino espera esta guriazinha, tão intacta, pura e casta, se trasladada contra sua vontade para uma cidade? A criança que pensa em fadas e acredita nas fadas, age como um deus doente, mas como um deus (Fernando Pessoa). Por que deslocá-la de seu meio de origem, onde aparições fantasmagóricas oferecem menos perigo do que assaltantes urbanos, para que arrancá-la do solo onde se fincam suas raízes, como se fosse transplantar uma árvore da floresta para a poluição das cidades. As cidades: o que têm a oferecer? Subempregos, moradias indignas, violência, prostituição, drogas, tudo o que Ana Caroline nunca encontrará na inocência da casa da família nas lonjuras deste insensato mundo. 

Por que a criação de uma unidade de conservação é dispensada das exigências que são aplicadas a qualquer empreendimento? Por que não se faz um relatório de impacto ambiental para avaliar os efeitos que provocará sobre os meios físicos, biológicos e humano? De antemão já se cuida de resguardar os efeitos dessas propostas sobre o clima, a geologia, geomorfologia, hidrologia. Sobre os vegetais e animais silvestres, sobre seus habitats, suas rotas migratórias, sobre as relações que mantém com a flora e com os elementos da natureza. Por que a implantação dos parques nacionais não avalia igualmente, de forma técnica e científica (o que não deveria nunca excluir o coração, a compaixão, a empatia e a solidariedade humana) a forma como uma unidade de conservação vai atuar sobre as populações tradicionais? Calcula-se a carrying capacity ocasionada pelos visitantes sem sequer se atentar ao impacto de moradores que praticam a pecuária e a agricultura de forma rudimentar, sobre o novo empreendimento, ou seja, qual é o impacto que provocam.

Questiono também a eficácia de se proteger a natureza sob a forma de unidades isoladas, compartimentadas, sem qualquer conectividade entre elas. Fragmentos não são uma unidade. Diferentemente da visão acadêmica convergente que sempre prevalece quando se trata de defender uma planta ameaçada de extinção, é necessária uma percepção mais ampla e menos convergente do mundo, é preciso vê-lo como uma totalidade, uma unidade.  Viajando de avião para Cuiabá, pude observar que as únicas áreas preservadas eram os topos de morro e as matas ciliares, o resto todo transformado em extensas lavouras de soja. Faz-se um parque nacional aqui, outro ali, tudo desconectado. Não que eu seja contra unidades de conservação. Quem dera houvesse mais e mais! Só que nos esquecemos que a Terra é um ser vivo, um organismo como nossos corpos. O que seria de nós se protegêssemos uma unha aqui, um olho ali, o umbigo acolá? Tudo deve ser protegido integradamente e não é um simples pequeno fazendeiro que vai perturbar o equilíbrio universal.

O animais da casa, de trabalho, subsistência e companhia, são entes das famílias dos peraus. Nestas imagens, todos eles tomam parte, em alguma medida, de nossa interação com os moradores dos Aparados.

A pecuária sempre foi exercida no local sem danos à vida que ali ainda se acha preservada. Sua substituição pelo plantio de Pinus eliotti foi altamente danosa, mas substituir hoje essa espécie exótica por outras atividades pode ser mais nefasto. Visitei, nas vizinhanças do Parque, uma fazenda que pratica uma agricultura intensiva. Vê-se que só visam ao aumento da produtividade e à redução do tempo de produção. O emprego de insumos como adubos e agrotóxicos, a calagem que ali presenciei, máquinas, implementos e uma tecnologia sofisticada pode tornar o cultivo muito mais perturbador ao equilíbrio do ambiente local.

  Quando uma propriedade não ocupa uma área nuclear do parque, mas sim periférica, ela pode atuar, dentre outros cabimentos, como:

  • Uma zona de proteção à unidade de conservação;
  • Um repositório de saberes e fazeres tradicionais;
  • Um local de contato de turistas com a vida regional;
  • Uma nova fonte de recursos financeiros para os proprietários que podem oferecer iguarias típicas;
  • Um lugar onde se pode conhecer a vida no dia-a-dia de um proprietário rural;
  • O contato com vacas, cavalos, galinhas e outros animais domésticos;
  • Idem, com vegetais
  • Um local de hospedagem chez l’habitant, uma prática europeia em que o visitante pode compartilhar de momentos únicos na convivência com os moradores tradicionais;
  • A oportunidade de conhecer aspectos folclóricos, legendários, míticos, simbólicos, da natureza.

A legislação ambiental brasileira se fez à parte, independentemente e muitas vezes antagonicamente à legislação cultural. Meio ambiente e cultura são uma só e única coisa. Proteger a cultura tradicional pode ser mais eficaz do que proteger a natureza excluindo-se o ser humano. É obvio que há áreas que devem ser protegidas de forma intangível, mas, naquelas que são abertas ao uso público, não há porque expulsar quem convive há séculos com a natureza, detendo conhecimentos únicos, sem provocar impactos significativos sobre seus recursos.

Uma prova da americanização da paisagem dos Aparados da Serra é ter sido dado o título de cânions aos desfiladeiros que justificaram a proteção do território como unidade de conservação. Por que não os chamar de perau, o nome com que os nativos o conhecem? O país é uma União, todos temos que agir unidos, seja qual for o interesse das partes. Dentre outros compromissos, o Estado garante a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, apoia e incentiva a valorização e a difusão das manifestações culturais. Protege as manifestações das culturas populares dos grupos participantes do processo civilizatório nacional. Defende e valoriza o patrimônio cultural brasileiro; promove e difunde os bens culturais; valorização da diversidade étnica e regional.

Moradores tradicionais das redondezas dos peraus: Maria de Fátima Rodrigues Ribeiro e Osvaldo Souza Lopes posam para a fotografia; o fogão à lenha, e, anexo à casa, o galpão da criação. Ao lado, Osvaldo Padilha da Silva, morador da região, carrega sacos de pinhão, no sistema mala de garupa; o domador de cavalos Aloide de Souza Lopes, treinando o ofício de guasqueiro (trançador de couro).

Vejo formas muito fáceis de resolver o problema dentro da visão e da legislação ambiental e cultural. Por que os órgãos ambientais não orientam as populações tradicionais para transformar suas propriedades em uma Reserva Natural de Patrimônio Natural – RPPN? Isso os condicionaria a cumprir restrições que seriam definidas de comum acordo com os órgãos ambientais. Lembre-se que a criação dessa figura legal se deve à vontade de fazendeiros gaúchos de proteger os remanescentes florestais originais de suas propriedades e, em decorrência, passarem a contar com novas fontes de recursos financeiros. As RPPNs, uma iniciativa pioneira, são atualmente as unidades de conservação mais bem-sucedidas na preservação e conservação de recursos naturais, com a vantagem de oferecerem alternativas pecuniárias aos que a elas aderem.

Uma coisa é o IPHAN, outra, com um âmbito muito mais amplo, a Constituição Federal. O tombamento é um ato compulsório que visa a preservar os bens culturais estrito senso. Antes de me aposentar criei uma nova figura de proteção para esses bens e para os que são estabelecidos pela Magna Carta, a Paisagem Cultural. Utilizando a designação paisagem cultural, adotada pela Organização das Nações Unidas para a Educação e Ciência – UNESCO, inspirado pelas RPPNs e pelos Geoparques, também da UNESCO, propus uma forma de acautelamento que proviesse da vontade do proprietário, abolindo a forma compulsória utilizada pelo tombamento.

Participei das equipes criadoras dos dois primeiros geoparques brasileiros, O Geoparque do Araripe, no Ceará, e Serra da Bodoquena/Pantanal, em mato Grosso do Sul. Aparados da Serra acaba de ser declarado como um geoparque brasileiro. Talvez isso abra os olhos dos conservacionistas radicais para que, seguindo os princípios por eles definidos, adotem uma postura mais humana (e não antrópica, como dizem em seu jargão).

Encerro meu depoimento indagando: por que não se pode proteger de forma conjunta, integrada e simultânea os ecossistemas e as manifestações culturais? Os povos do Perau não são o mesmo povo que visita o Parque Nacional dos Aparados da Serra ou da Serra Geral. Deles diferem substancialmente. Mais do que ninguém, conhecem a região de forma indissociável e intimamente atrelada à natureza local. Sabem prever o clima, conhecem solo, as pedras, as flores, as aves, os habitantes subterrâneos que dão vida à terra, os seres fantásticos em que creem. Eles têm direitos a sua história, a sua identidade, a sua cultura, ao seu senso de pertencimento. Eles são a terra. Aos responsáveis pelo destino da família Schefer Klippel da Silva e de outras que como ela vêm convivendo há séculos com a beleza e integridade da natureza gaúcha, eu rogo: consultem suas mentes e seus corações antes de, cheios de boas intenções, desapropriarem e expulsarem os indefesos moradores originais e tradicionais. Não pode haver antagonismo entre o homem e a Terra, sua mãe. Não se pode excluir o AMOR!

São Paulo, 19 de maio de 2022

Carlos Fernando de Moura Delphim