Carlos Fernando de Moura Delphim em retrato do fotógrafo Daniel Herrera, emoldurado pelas folhas de uma Gunnera, em seu primeiro encontro com a planta, nos Aparados da Serra.

Serra Geral: OLHAR E PAISAGEM
Carlos Delphim

Realizamos esta entrevista com Carlos Delphim alguns dias depois da nossa primeira incursão aos Aparados da Serra, na companhia do autor, com especial atenção aos sítios do Itaimbezinho e Fortaleza.

Carlos Fernando de Moura Delphim é de Lavras, sul de Minas Gerais. No seu mais recente livro (Três Dimensões do Jardim - Rio de Janeiro; Paisagens Híbridas, 2021), ele nos conta que, ao nascer, pela tradição do lugar, seu umbigo foi enterrado ao pé de uma roseira do jardim da casa materna. Desse batismo, nunca mais apartou-se das flores, das plantas – as quais (ou melhor, a quem) costuma chamar pelos seus nomes usuais, apelidos e nomes científicos. 

Engenheiro-arquiteto pela UFMG, foi responsável pelo restauro do Jardim Botânico do Rio de Janeiro entre 1977 e 1985. Pioneiro na defesa dos jardins históricos do Brasil, como bens culturais, Carlos Delphim escreveu muitos pareceres sobre nossas paisagens. Entre estes diagnósticos, destacam-se os ensaios reunidos no livro Paisagens do Sul (Porto Alegre, IPHAN/IPHAE, 2009.) É autor dos livros Jardins do Rio e Jardins do Brasil (ambos publicados pela Editora Atlântica, Rio de Janeiro, 2012)

Carlos Delphim criou o Jardim Botânico de Brasília, entre outras obras e contribuições para intervenções em paisagens no Brasil e no exterior. Para a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), escreveu parecer para a inclusão na lista de Patrimônio da Humanidade das florestas úmidas tropicais de Queensland, Austrália.

E foi assim que Carlos Delphim, do umbigo enterrado na roseira de Lavras, ajudou a preservar florestas no outro lado da Terra. Carlos é este Senhor das plantas, pensador das paisagens, aqui, em viagem pelos Aparados da Serra.

* Entrevista concedida a André Costantin:

Vista aérea dos peraus, bordas e campos do Fortaleza, no Parque Nacional da Serra Geral. Visão a partir da face norte do cânion; vê-se o perau da cascata do Tigre Preto, principal curso de águas do desfiladeiro.

Você lançou muitos olhares às paisagens do Rio Grande do Sul, expressos nos ensaios e pareceres reunidos no livro Paisagens do Sul (IPHAN/IPHAE), de 2009. Como foi, agora, olhar os Aparados da Serra, depois de tantas paisagens olhadas e pensadas em sua obra?

Cada vez que se olha uma paisagem vê-se uma nova paisagem. Cada olhar é um momento diferente, cada qual revela uma outra vista. Se pisco os olhos, ao abri-los, a paisagem já muda. A impressão provocada pela luz em minhas pupilas ao piscar, leva um tempo para que o que vejo se modifique. Nunca se revê um panorama, cada vez que pisco os olhos ou torno a olhá-lo, vê-se um novo panorama e o olhar também é um novo olhar. Isso porque a paisagem e eu somos uma única e só coisa. As paisagens mudam tanto quanto os olhares que a vislumbram, tanto mais se modificam quanto mais tempo se passa. Ao voltar ao Rio Grande do Sul, suas paisagens me deslumbraram como se eu nunca houvesse vindo aqui, como se já não conhecesse a beleza deste estado.

"Visitar os Aparados da Serra foi tão surpreendente como se me
tivesse sido dado conhecer outro mundo."

Um grande território se estendia diante de mim. De repente, de repente… foi tão repentino!  Toda a bucólica e previsível placidez das coxilhas rompeu sua horizontalidade. Eis que céu e terra se transfiguram em um imperscrutável abismo. Lá fora, um novo mundo se apresentava diante de mim. Dentro, em minha mente, se forjavam imagens de forças ciclópicas se interpondo entre mim e o mundo, entre o real, o objetivo e o imaginário, o subjetivo. Não consigo acreditar que o desfiladeiro dos “peraus” tenha derivado de processos erosivos provocados pelo lento desgaste das rochas basálticas ao longo de milênios. Uma ruptura de tamanha potência só pode decorrer de um ato instantâneo, como um tecido que se rasga, um vidro que se parte, um ato imediato e traumático que fez estremecer toda a região e que hoje, quando ali se chega, nos faz estremecer, arrepiar.

Os peraus, não somente dos Aparados da Serra, como os da Fortaleza e do Itaimbezinho, não se contentam em serem contemplados. Eles nos provocam, despertando no observador forças telúricas primordiais, até então adormecidas. Como um abalo sísmico em nossas mentes. Um dramático, mais que isso, um frêmito traumático percorre a paisagem e faz estremecer nossa percepção. Diante de tão espantoso fenômeno, não pensei na grandeza de Deus, mas em deuses, em deuses primitivos, impulsivos, vingativos, odientos, que dominam as forças da natureza e ameaçam os mortais com o estrondo de trovoadas, e o relampejar de raios. Só eles poderiam ter dilacerado a doce harmonia dos campos, criando uma nova paisagem nas profundezas.

Taipas (muros de pedra) e araucárias, composição dos Aparados da Serra.

No livro Jardins do Rio (Editora Atlântica, 2012), você situa o olhar humano como parte da própria paisagem. Aos teus olhos, que dimensões do olhar evocam os cânions do Itaimbezinho e do Fortaleza?

Há tantas dimensões quanto focos no olhar. A paisagem e o olhar são uma só e única coisa. O que vejo é eu. Ao mesmo tempo que contemplo a magnificência da paisagem dos peraus do Fortaleza e do Itaimbezinho, não deixo de dirigir meu olhar para uma pequena erva, um líquen, um cascalho com um formato que me faz lembrar outro objeto. Se encontro uma  lasca se basalto trincada, já vou imaginando recompô-la sob a forma de uma escultura. Coloco-a sobre uma base, vou ligando seus pedaços com um friso metálico, para depois enfeitar minha casa com ela. Meu olhar não se detém em nada, nem mesmo naquilo que chame minha atenção. Sou inquieto, meus olhos se distraem, se perdem diante do voo de uma ave, da aparência das nuvens, da profundidade dos abismos. Tudo me chama. Tudo atrai minha atenção e a tudo eu vou dispensando a mesma atenção. É obvio que a grandeza de um planalto despencando súbita e verticalmente sobre um precipício, produz em minha mente e em meu coração uma impressão muito maior, contudo, não exclusiva.

Tudo depende também do tempo que se dispõe para a contemplação da paisagem. Se pudéssemos quedar horas contemplando, nossos olhos iriam se relaxando e o foco do olhar iria se desligando do que se vê objetivamente. O foco pode perder-se além ou aquém da coisa vista. Pode ir ficando difuso, desconcentrado, pode-se ver coisas que não existem neste plano em que vivemos, mas em outros com os quais não lidamos na vida cotidiana. Se soubermos relaxar e nos desprender deste mundo denso e pesado, conheceremos as levezas de outros mundos. Há quem já nasça com os olhos desfocados da realidade. São considerados loucos. Há quem busque esse desprendimento por meio de drogas e há quem alcance novos mundos por meio de meditação e desligamento da realidade. Como diz Guimarães Rosa, o mundo é etecetera, mas muito poucos veem o etecetera em sua completitude e plenitude.

Se não percebo o mundo, não há mundo. Se o vejo, se o toco, se sinto seu odor, se escuto seus rumores, o mundo passa a existir. Mas não nos basta vê-lo, precisamos compartilhá-lo. A forma como cada um o percebe é muito diferente. Se eu transmito a outro o que percebo e se o outro me diz o que vê, nossas percepções se somarão. O mundo em sua plenitude são todos os olhos a olhá-lo, vendo e sendo vistos. Olho a paisagem da Serra Geral. Vejo árvores, campos, aves. Outro verá madeira, pastos, caça. Outro, mosquitos, carrapatos, cobras. Talvez haja quem vê anjos, divindades, luzes do além.

Olhar implica num gesto, numa ação; que recomendações você daria a quem olha e também a quem deve gerir os Parques Nacionais do Itaimbezinho e do Fortaleza, em Cambará do Sul?

Primeiro: olhe com seus olhos. Eles mostrarão o que você é, o que você pensa. Eles definirão tudo mais. Depois, olhe com os olhos alheios. Veja o que outros veem. O que um morador tradicional vê nesse cenário? Gerir um parque não é chegar, cumprir a burocracia que lhe é incumbida. E se essa incumbência exige que o gestor seja impiedoso? A legislação manda expulsar os moradores. Todos? Sem exceção? Cada caso é um caso, cada situação difere da outra.

"Um morador tradicional pode cuidar melhor de sua terra do que quem
já chega achando que uma terra pode ser resguardada efetivamente
pelo mero cumprimento da legislação vigente."

Casa tradicional de família remanescente do entorno do perau do Itaimbezinho, em Cambará do Sul, RS. À porta, Maribel Edira Klipel da Silva.

O Itaimbezinho e o Fortaleza lhe trouxeram percepções e sensações diferentes? Você poderia ilustrar algumas sensações desses dois sítios?

Olhar o Itaimbezinho e depois o Fortaleza, foi como ver o outro lado de uma moeda, como ver o avesso de um quadro, um reflexo em um espelho que tudo modifica, em que tudo se inverte. O que era o lado de cá, passa a ser o lado de lá. Em seguida, o que aqui era o lado de lá, passa a ser o lado de cá acolá. O Fortaleza acrescentou-me uma sensação diferente, um maior distanciamento do mundo dos humanos, das pessoas que eu podia ver lá do outro lado, bem pequenininhos, contra a luz do horizonte.

Você já tinha visto um campo “dobrado”? E tomado parte de uma sapecada de pinhão?

Nunca havia visto ou ouvido falar de um campo dobrado, um perau, uma curicaca, um pastel de pinhão, uma sapecada de pinhões. Quantas coisas novas me foram apresentadas, cada uma delas enriquecendo minha vida por ser nova, por ser mágica e encantadora.

Relevo dos campos “dobrados”, no território de Cambará do Sul.

O eixo Gramado-Canela, um dos principais destinos turísticos do país, é limítrofe aos Aparados. O turismo de massa é compatível com as paisagens e parques do Itaimbezinho e Fortaleza?

Nada que é feito para as massas pode ser compatível com lugares sacralizados. São lugares únicos, não comparáveis a um passeio a Las Vegas ou Miami, a um safari ou uma escalada de um pico – para onde aportam turistas insaciáveis que viajam para poder depois mostrar fotos e narrar experiências insossas aos amigos ainda mais insossos. Itaimbezinho e Fortaleza não foram feitos para consumo.

Como você avalia intervenções implementadas em muitos parques naturais mundo afora, como plataformas de vidro, passarelas, teleféricos?

São feitas para os turistas aos quais acabo de me referir. Suas tacanhas percepções e emoções encontram muito mais emoções atravessando um perau por cima de uma passarela de vidro, olhando para baixo e tirando fotos, do que sentiriam se se quedassem parados, a contemplar de suas bordas, os paredões vertiginosos, plantas crescendo em lugares inóspitos, revoadas de aves, nuvens se formando ao fundo da fenda, um mundo novo, todo envolvido pela deslumbrante abóboda celestial.

A intervenção de dotar um parque com um mirante é diferente pois permite ao observador mirar a paisagem de forma segura e resguardada por guarda-corpos, sem ter que esperar um povaréu indo e vindo, parando, comentando, demorando, formando filas. Isso é necessário, difere das passarelas, já que não assoberba a natureza com escavações e construções que exigem fortes bases para manter a estabilidade e suportar o peso dos visitantes.

Primeiro, era a paisagem e o homem; o gado, as taipas de pedra; depois vieram as florestas de pinus; hoje surgem as primeiras lavouras extensivas na região; como você percebe o curso dessas intervenções na paisagem dos Aparados?

O mundo está sempre se modificando. Paralisá-lo é impossível, só nos cabe controlar as modificações, evitando as que possam destruir o que tem de único, singular, excepcional. A paisagem original dos peraus deixou de existir quando os europeus aí chegaram, expulsando os ocupantes nômades e autóctones. As taipas, malgrado serem maculadas pelo suor e sangue dos escravos, vieram embelezá-la. Criaram uma nova marca estética, ainda que desumana. A paisagem já se achava muito bem preservada pela prática da pecuária naquelas grandes extensões onde o gado podia se deslocar por prados quase ilimitados.

Composição de uma clássica paisagem dos Aparados da Serra, modelada pela criação do gado de forma tradicional (extensiva) ; visão a partir da RS 020, entre Cambará e Ausentes.

O pastoreio preservou os campos dobrados, embelezando-os com a placidez das vacas em suas pastagens. O suave movimento das vacas nos prados copia o fluir das nuvens nos céus. Nem os plantios dos pequenos proprietários veio alterar a casta aparência do panorama. O plantio de pinus expulsou todos esses aspectos da paisagem que se desintegrou toda, se modificou, com formas, cores e vidas alheias substituindo as originais, tornando o cenário um arremedo do sul dos Estados Unidos.

Outra fase de evolução da paisagem local foi a criação de parques nacionais.  Sob o discurso de preservação de recursos naturais, atrai turistas alheios aos maiores valores dos peraus, ignorantes do que se esconde por trás de sua magnífica indumentária, ávidos por desenvolver atividades dinâmicas, raramente contemplativas. Conserva-se um fragmento da paisagem, mas isso não é suficiente. É preciso conectar as áreas protegidas como os capões por meio de corredores ecológicos.

Por ora os pinus vão sendo extirpados. Como nem tudo é totalmente prejudicial, esses forasteiros trouxeram do hemisfério norte esporos de fungos até então inexistentes nos campos gaúchos. Essa nova fonte de alimentação não deve ser inteiramente eliminada. A supressão dos pinus implica em seu desaparecimento, por isso algum pinheiral deve ser preservado para assegurar condições a esse cultivo espontâneo e também como testemunho de uma fase de evolução da paisagem da região.

Transporte de toras extraídas das florestas de pinus elliottis.

Agora, uma nova atividade vem ameaçar a harmonia dessas lonjuras: a agricultura intensiva, que vem se instalando como uma nova ameaça à autenticidade e integridade da paisagem, tratando grandes expansões da região de forma uniformizante e devastadora, expulsando as formas macro e microscópicas de vida, substituindo-as por monocultivos que exigem muitos veículos, tratores e diferentes máquinas para lavrar a terra, semear, adubar, colher e outras operações perturbadoras. A pureza do ar é trocada por gases poluentes, a terra é envenenada por agrotóxicos que a irrigação artificial conduz para as águas límpidas das profundezas; ao silêncio da natureza, sucede o barulho de motores. Habitantes do subsolo, da superfície da terra, dos ares e das águas são exterminados ou expulsos de seus habitats. Tudo isso para quê? Para enviar a seiva da vida de nossas paisagens para outros continentes, em troca de dinheiro. Um dinheiro que se concentrará em um ou outro cofre, um prejuízo distribuído por todos seres viventes da região.

Conversão de áreas de florestas de pinus em monoculturas de agricultura intensiva.

Há pouca presença humana tradicional nos Parques do Itaimbezinho e Fortaleza; como esse âmbito da paisagem deve ser reconhecido e tratado?

Essas raras presenças remanescentes do processo de formação da região foram deslocadas para outras paragens pelas exigências da criação de unidades de conservação que, compulsoriamente desapropria suas terras pagando uma indenização muito inferior a seu valor venal. Suas ausências são preenchidas por guardas mercenários, por burocratas donos da verdade, trêfegos visitantes e turistas, uma chusma de gente que irá impactar a paisagem muito mais do que uma família modesta o faria. Que mal acarretam duas ou três vacas, um ou dois cavalos, galinhas, patos, um burro. Os moradores que aceitam a indenização mudam-se para centros urbanos onde só disporão de uma casa acanhada e de empregos sub-remunerados. Só os ocupantes originais dessas paragens, os que a conhecem em sua plenitude insistem em ali permanecer, à custa e duras penas. Tudo o que fazem é multado, a ameaça de sua expulsão paira sobre eles, crianças, adultos e idosos como a iminência de uma espada de Dâmocles.

A tradição oral da região fala dos “peraus”. Canyon é uma palavra que veio de fora. Você ouviu esse termo por lá?

Nunca havia ouvido, quando fui ouvindo pela primeira vez, achava que fosse um pomar de peras, um peral. Tão logo entendi do que se tratava, renunciei para sempre ao vocábulo inglês. Por que falar cânion e ainda colocar-lhe um acento circunflexo, se temos nosso próprio vocábulo? Não tenho por princípio repudiar galicismos ou anglicismos que venham a enriquecer a língua pátria, porém, se já dispomos do vocábulo em português, por que não o utilizar e o divulgar, reincorporando-o ao nosso idioma?  Cânion tem em muitos outros lugares. Peraus, só no Rio Grande do Sul.

Visão parcial do Itaimbezinho, cânion com 5,8 quilômetros de extensão e paredões de até 720 metros de profundidade. A cada olhar, um novo perau configura-se na visão e na imaginação.

Como foi o seu encontro com a Gunnera nas estradas dos Aparados, ao descer Serra do Faxinalzinho?

Pode parecer exagero, mas encontrar na natureza uma flor que já conheço de livros, contudo, nunca vista em seu habitat silvestre, é uma surpresa recompensadora para um amante da flora. Foi a segunda vez que senti essa emoção no Rio Grande do Sul. A primeira vez, vi umas flores de um róseo-avermelhado no meio de um bosque, pedi ao motorista que parasse e vi, pela primeira vez, um pé de Acca selowianna, uma das poucas, senão a única, mirtáceas de flores coloridas, aqui chamada de goiaba-da-serra ou araçá-da-serra.

Não pude deixar de dar um berro e pedir que parassem o carro tão logo vi a primeira Gunnera ladeando a linda estrada. Pensei que só houvesse um exemplar. Não, toda a estrada era bordejada por esse vegetal descomunal e por muitas outras plantinhas de pequeno porte igualmente lindas. Como são grandes os limbos dessas folhas, como são longos seus pecíolos. Acho que na Serra Geral lhe dão o nome de urtigão. Daniel Herrera fez uma fotografia minha diante dessa planta tão singular que acho que foi a melhor foto que já tirei em toda minha vida.

As araucárias e os peraus, como interagem na paisagem dos Aparados?

As araucárias me comovem onde quer que cresçam. Em terras gaúchas, no Paraná, Santa Catarina. Em altitudes de São Paulo, na Serra da Mantiqueira em Minas, ou em serras fluminenses. No entanto, não as havia admirado em campos tão extensos como os da região dos Aparados da Serra. Centenas de bosquezinhos despontando entre a vegetação baixa das suaves inclinações curvas dos campos dobrados, os vazios dos relvados permitindo abrilhantar a percepção desses capões. Inesperadamente, a plácida paisagem do planalto parece ter explodido, graças à repentina ruptura da levemente sinuosa horizontalidade de uma paisagem campestre. O contraste é tão dramático, posso dizer traumático, que nos remete a indagações sobre que forças sobrenaturais teriam provocado fenômenos telúricos de tamanha suntuosidade e esplendor.

Itaimbezinho, na da Trilha do Cotovelo: araucárias centenárias dão a dimensão dos peraus.

As curucacas (ou curicacas), as pegadas de leão-baio – como você percebeu os bichos dos aparados?

As curicacas foram o que mais me surpreendeu em toda a viagem. Sempre esperamos ver aquilo que já sabemos existir, mesmo nos lugares onde vamos pela primeira vez. Como nunca tinha ouvido falar da existência de aves tão deslumbrantes, a surpresa de vê-las pela   primeira vez foi como a revelação de um mistério primordial. Até agora não sei se elas existem. Acho que não existem, porque ninguém as conhece, nem mesmo o computador que grifa de vermelho o termo curicaca cada vez que o escrevo.

Mesmo sendo mais dedicado à flora do que à fauna, ver bichos me enternece, mas isso acontece mais comumente. Lamento tanto quando vejo o corpinho atropelado de um pequeno mamífero ou de uma ave nas estradas. Fico pensando se eles têm filhotes e, se têm, o que será deles. A pegada de um puma ou, como se diz pelos peraus, de um leão-baio, talvez seja mais instigante do que seria vê-lo em carne e osso, pois aguça mais a fantasia.

Lembro-me sempre de um lindo pássaro azul-metálico à beira da estrada que leva aos Aparados da Serra. Pedi que Daniel o fotografasse. Chegando em Porto Alegre, comprei um livro sobre aves gaúchas. Nunca pensei que houvesse tantas e tão lindas! Ponho-me a imaginar quantas maravilhas vivas como essas ainda existem e quantas desapareceram ou vão desaparecendo em consequência das impiedosas ações humanas.

Pássaro azul à beira da estrada, fotografado a pedido de Carlos Delphim.
Pegadas de Leão Baio, os pumas das cercanias do vértice do Fortaleza.

Pelas cercanias de Cambará do Sul, mesmo andando em uma trepidante Toyota Bandeirante, você comentou que certas estradas de chão não deveriam ser asfaltadas. Por quê?

Nunca deveriam. O asfalto é um espesso material isolante usado na pavimentação de rodovias e vias urbanas. Por impermeabilizar os terrenos onde é empregado, impede que a permeabilidade dos solos exerça funções essenciais à manutenção da qualidade microclimática, que são a capacidade do solo respirar e transpirar. Além disso, a cor negra absorve e irradia calor. Sem o asfalto, o ar seria muito mais agradável sob os pontos de vista térmico e de umidade. Talvez devesse ser indicado somente para grandes rodovias onde trafegam veículos pesados e se exige grandes velocidades e maior vida útil da pavimentação. Hoje, o comércio oferece asfaltos porosos e até coloridos, que poderiam repetir as tonalidades dos solos onde forem utilizados, integrando os caminhos à natureza circundante em vez de criar contrastes que desmerecem a beleza da paisagem.

A neblina que vem dos peraus: viração dos Aparados.

Ao pisar diretamente  sobre o solo com os pés nus, recebemos uma energia que é transmitida por nossa mãe-terra, como ocorreu com o personagem da mitologia grega, Anteu, excepcionalmente forte quando seus pés descalços estavam em contacto com sua mãe, a terra, ficando, porém, indefesamente fraco se desprendesse seus pés do solo.

Estradas de chão diminuem o ritmo do olhar e revelam os basaltos da região.

"Quem viaja por uma estrada de chão batido ou revestida com pedras, pode melhor contemplar as paisagens. Pode, assim, abdicar à pressa, esse medo sem saída, harmonizando-se com os tempos da natureza que não são os mesmos dos relógios."

Você teve medo do Gritador, ao ouvir as histórias sobre Ele?

Acho que sim. Perguntei isso a uma menininha cuja casa visitamos nos Aparados. Ela não respondeu, mas ergueu os ombros em um gesto de terror, como se um frêmito a percorresse. Senti também um arrepio. Dizem que quando algo faz alguém arrepiar uma vez, não há nada de sobre-humano nisso, mas se o arrepio de repete, confirma que se trata de uma manifestação do Além.

Sempre ouvi falar de entidades que assustavam gente da roça, pessoas muito simples, aparições que me pareciam inofensivas. Como a mula-sem-cabeça que solta fogo pela boca. Que boca? Como o saci, que mais parece um personagem buliçoso de histórias infantis. Quem o via e descrevia, nunca o fazia de modo convincentemente assustador. Como nos narrou uma comadre de meus pais que morava na roça, descrevendo a aparição de um saci-pererê:

– E era um saci português, comadre!

– Português como, comadre? inquiriu minha mãe.

– Ele usava um chapelão de português e tinha um bigodão bem grande.

O Gritador é muito mais aterrorizante do que essas figuras lendárias. Ele é incorpóreo, é um som, uma voz, um grito, um uivo que vai aumentando de intensidade, tornando-se mais alto, ficando ensurdecedor à medida que vai se aproximando. Faz lembrar um conto de Lovecraft no qual uma cor cai do céu, sobre uma pequena localidade, uma tonalidade inominável que vai se impregnando a tudo, tornando intoleráveis e tenebrosos os dias e as vidas dos moradores. Sabemos lidar, com muito mais desenvoltura, com o que é material. A imaterialidade é muito mais apavorante pelos mistérios com que nos assombra, por não nos ser dado o poder de desvendá-los. Tocar uma fera nos causa medo, um medo que um tiro, uma paulada pode nos livrar, por ser real. Mas não dispomos de armas nem temos como enfrentar o que é intangível.

Quais imagens ou mitologias das paisagens evocam os peraus – abismos dos Aparados? Há uma dimensão do sagrado nos peraus?

Evoquei mil deuses do Olimpo ao imaginar como surgiram os Aparados da Serra e os outros peraus. Apenas forças ciclópicas, advindas de mundos não humanos poderiam causar tal fenômeno. Quanto à dimensão do sagrado, tudo o que é por demais grandioso é sagrado. O oceano, um pôr de sol, um pico de incomensurável altura, uma tempestade, um furacão, os abismos. Tudo o que inspira em nossos espíritos um profundo sentimento de reverência e  adoração; tudo que nos desperta um certo temor àquilo que nos transcende; tudo o que é puro e nos faz aspirar à purificação; tudo o que é transcendente ou possuidor de um poder sobrenatural. Tudo isso para mim é sagrado.

A viagem aos Aparados lhe devolveu o gosto de pegar a estrada?

Antes de receber a solicitação de visitar os Aparados, eu estava o tempo todo preso em casa. Ficava trabalhando, pintando, escrevendo, pois não sei ficar desocupado ou ocioso. Não aceitei de imediato o convite, nem me senti tentado a conhecer lugares que eu imaginava serem selvagens e distantes do conforto urbano ao qual a COVID me acostumara. Eu estava me locomovendo com dificuldade e receava caminhar por campos e montanhas. Aos poucos a centelha acendida pelo convite foi aumentando, esquentando, iluminando e logo me incendiou. Nem bem chegara aos Aparados e já saí caminhando, sem qualquer sequela deixada pela pandemia que tanto me afetara. 

Carlos, no seu encontro com a Gunnera, você verbalizou: “Acho que o mundo está doente por causa dos nossos olhos”. Você poderia abrir um pouco mais este seu pensamento?

Muitas vezes eu penso falando, raras vezes falo pensando antes naquilo que vou dizer. Não me lembro de ter dito o que agora vejo ser uma grande verdade. Parece não ter sido dito por mim. Para responder-lhe, tenho que transformar em pensamento o que disse a partir de uma intuição. Os olhos humanos estão realmente doentes. Perdemos a visão abrangente e engrandecedora, que fazia com que nossos pensamentos nos dirigissem para as grandezas celestiais. Agora, deixamos nosso olhar se convergir em bens materiais. Nossas mentes se perdem em preocupações mundanas e concêntricas como dinheiro, prestígio, poder. As crianças não aprendem o que é grandioso, não sabem olhar o mundo de forma ampla e extensiva, só fazem convergir os olhares em celulares e televisões. Uma doença muito mais contagiosa do que se pode supor. Não obstante, é facilmente curável. Basta ir a um lugar de beleza tão deslumbrante como os peraus do Rio Grande do Sul. Basta se deixar perder, em corpo e alma, nesses labirintos de desmedido esplendor.