Visão aérea dos peraus da Fortaleza, Parque Nacional da Serra Geral. / Fotografias de Daniel Herrera

DENTRO DOS PERAUS
Carlos Delphim

"Quando você olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você."
          Friedrich Nietzsche
"O planalto central do Brasil desce, nos litorais do sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas. Assoberba os mares; e desata em chapadões nivelados pelos visos das cordilheiras marítimas, distendidas do Rio Grande a Minas.
         É uma paragem impressionadora.
As condições estruturais da terra lá se se vincularam à violência máxima dos agentes exteriores para o desenho de relevos estupendos."
          Euclides da Cunha
E entrou o sol; ficou nas alturas um clarão afogueado, como de incêndio num pajonal; depois o lusco-fusco; depois cerrou a noite escura; depõe, no céu, só estrelas... só estrelas...
          João Simões Lopes Neto

Fora, Dentro, Além dos Peraus

Carlos Delphim

Em um dia de maio, recebi um telefonema de meu amigo gaúcho André Constantin, convidando-me para ir aos Aparados da Serra, onde desenvolveríamos juntos um trabalho sobre a paisagem local. Inseguro para viajar, a princípio relutei. Tanto tempo fechado em casa por causa da pandemia, deixou-me ressabiado. A COVID deixou-me sequelas motoras, receava ter que andar por lugares acidentados. André e seu amigo Daniel Herrera tudo fizeram para me tranquilizar. Disseram que tinham comprado uma cadeira de diretor de cinema para eu poder descansar durante as caminhadas, que lá eu disporia de médicos e ambulâncias e outros argumentos que me convenceram a aceitar a incumbência.

Assim que o avião se pôs a sobrevoar Porto Alegre, já fui me esquecendo de meus achaques. Que alegria rever uma cidade que, o nome já diz, tanta alegria traz a quem ali vive e a quem a visita. André me esperava no aeroporto e dali já fomos direto para o distrito de Fazenda Sousa, em Caxias do Sul, cidade onde se realizava uma olimpíada de surdos. Foi o único hotel onde se pode achar um apartamento vago só por um pernoite. No dia seguinte, ele e Daniel vieram me buscar, cada qual em seu veículo. Daí partimos para Cambará do Sul, onde eu iria me hospedar durante os dias que lá permanecesse.

Caderno de Viagem: Nas cercanias da vila de Fazenda Souza, ao cruzarmos por uma propriedade camponesa, onde via-se perto da casa uma singela estrutura de tábuas de araucária curtidas pelo tempo, coberta em meia-água com telhas de barro comuns, tipo francesas, Carlos comentou: “então, o mundo seria menos mundo sem esse galpãozinho.” (AC / André Costantin)

No caminho, parando em um restaurante para comer alguma coisa rápida, fiquei fascinado com o ambiente. Que lugar singular: uma pequena casa à beira da estrada que atravessa uma cidadezinha de cujo nome não me recordo. Diante da casa havia algumas mesinhas com alguns gaúchos conversando e bebendo. Ao entrar, havia várias salas, todas com mesas e ao longo das paredes, móveis e prateleiras apinhados de objetos que me pareciam familiares, mas que creio nunca mais iria vê-los ou me lembrar deles, se ali não os houvesse reencontrado. Um verdadeiro museu de tudo o que há de obsoleto: instrumentos, móveis, aparelhos elétricos, enfeites, discos, ferramentas e tudo o mais a que hoje se dá o nome de vintage. Seguramente, um dos restaurantes mais charmosos que já vi.

Após deixar minha bagagem no hotel de Cambará do Sul, dirigimo-nos diretamente para os tão enaltecidos Aparados da Serra Geral. Pelo caminho eu me deleitava com os sucessivos e diversificados panoramas que a região oferece. É curioso como o Rio Grande do Sul apresenta tanta afinidade com Minas Gerais. Ambos se assemelham até no modo de diferir. Ambos têm uma cultura exclusivamente sua, diferente dos outros estados, uma identidade própria que respeitam, preservam e cultivam. Os dois são bem mais do que um estado, são como pequenos países. O Rio Grande do Sul possui uma identidade mais exclusiva, pois possui uma maior diversidade de feições. Cada uma de suas zonas difere das demais, dependendo de quem vive em suas fronteiras, das diferentes movimentações históricas, das etnias, do tipo de imigrantes, do solo, da geomorfologia, dos recursos hídricos, da vegetação, dos animais domésticos ou silvestres, dos cultivos agrícolas, da pecuária. Ambos os estados, ainda que muito diversificados, são sempre Minas, são sempre o Rio Grande do Sul. Como o Brasil, que é sempre Brasil, quer se esteja no Sul, no Norte, no Oeste, no Leste ou no Centro. Nas fronteiras, como por exemplo, em Ponta Porã, basta atravessar uma rua, para se constatar que já não se está mais em terras brasileiras.

* Na viagem de retorno dos Aparados, eu contava para Carlos sobre a lenda missioneira A Salamanca do Jarau, na versão de João Simões Lopes Neto (Pelotas, 1865-1916), autor dos clássicos Contos Gauchescos (1912) e Lendas do Sul (1913).  Citei, comendo algumas palavras, trecho que considero a chave da lenda: “Teiniágua encantada! Eu te queria a ti, porque tu és tudo! És tudo o que eu não sei o que é, porém que atino que existe fora de mim, em volta de mim, superior a mim…”. Fascinado, Carlos disse: encontramos o título para o texto dos Aparados: “Fora, dentro, além dos peraus”. (AC)

Visão geral do cânion do Itaimbezinho, Parque Nacional dos Aparados da Serra.

Serra Geral

"Caindo por ali há séculos as fortes enxurradas, derivando a princípio em linhas
divagantes de drenagem, foram pouco a pouco reprofundando-as, talhando-as
em quebradas que se fizeram
canons, e se fizeram vales em declive, até orlarem
de escarpamentos e despenhadeiros aqueles plainos soerguidos."
Euclides da Cunha

Os Aparados da Serra Geral são, indubitavelmente, uma das paisagens mais grandiloquentes do Brasil. Um planalto que avança pela face do planeta, ao aproximar-se do mar, estremece e se fende, quem sabe se receando ser dissolvido pelas águas salgadas do mar a seus pés. A porção superior pertence ao Rio Grande do Sul, as depressões sob os paredões alcantilados, a Santa Catarina. Como o relevo dessa formação geomorfológica é muito proeminente, a paisagem se recorta toda, espreguiçando-se docemente ao longo dos campos altos que revestem os platôs gaúchos.

* No carro, quando entramos pela estrada Rota do Sol, rumo a Cambará do Sul, Carlos, ao ver as primeiras paisagens dos campos de cima da serra, comentou: “acho que, agora, eu poderia morrer” (AC).

Os panoramas vão se desdobrando em formas vagas e onduladas, até serem bruscamente interrompidos pelas súbitas quedas verticais, que geram alturas abissais. Quem, do lado do Rio Grande do Sul, se deixa extasiar pela visão pela profundeza dos vales catarinenses, sente o espírito elevar-se a alturas celestiais. Tudo ali é belo e grandioso. Mais de trinta mil hectares se desdobram, repletos de beleza, de vida e magnificência. Tudo se ilumina, até a negrura do derramamento do basalto torna-se prateada, graças à cobertura branco-cinérea e luminosa dos líquens que o revestem.

Como se formou uma paisagem tão ímpar e incomparável? Que descomunal escultor talhou essas sólidas, compactas e rijas rochas basálticas? Há quem atribua essa origem à ação vulcânica, ao sol, ao vento, à corrosão pelas águas de rios e chuvas, à associação de todos os quatro elementos: terra, fogo, ar e água. O quinto elemento, o vazio, perpassa todo o quadro visual, dando-lhe insólita grandeza e amplitude. O Tempo, eis o mais provável artífice dessa obra de erosão, infiltração, rachaduras de rochas duríssimas, fissuras, deposição de partículas sólidas nas depressões onde a vida, a pouco e pouco, foi se instalando, crescendo, desenvolvendo até culminar na formação de florestas. Não creio que as águas, sozinhas, tenham podido corroer os pétreos paredões dos peraus. O que poderia ter fragmentado, rompido e separado o planalto em muralhas de dezesseis quilômetros de extensão e até setecentos de altura? Um abalo sísmico? A ira de um deus contrariado? As placas tectônicas, durante a separação dos continentes? Um processo dinâmico que continuará, sem cessar, enquanto o mundo existir?

"Estiram-se então planuras vastas. Galgando-as pelos taludes,
que as soerguem dando-lhes a aparência exata de
tabuleiros suspensos,
topam-se, a centenas de metros, extensas áreas ampliando-se,
boleadas pelos quadrantes, numa prolongação indefinida de mares."
Euclides da Cunha

Sucessivos estratos de materiais depositando-se ao longo de milênios foram criando camadas que permitem revelar a evolução histórica desses despenhadeiros. A estratigrafia mostra a sobreposição de rochas basálticas de diversas épocas, uma sobre a outra: as atuais, mais superficiais, as mais remotas mais aprofundadas. Desde que esses depósitos vulcânicos irromperam, cada uma de suas alturas revela uma época que revela os segredos de longínquas eras geológicas. Como sugiram? Foram transportados pelos ventos? Por águas fluviais? Pluviais? Decorrem de choques térmicos? Provêm de material acarreado de outros sítios?

* No Itaimbezinho, Carlos vagava pela sede do Parque, toda em obras. Ele estava “plugado”, com microfone sem fio. Eu com a câmera e fones de ouvido. É assim que, muitas vezes, em trabalho de campo, eu escuto além dos ouvidos. Então capto a curiosa constatação: “Eis a prova irrefutável de que África e América eram uma só coisa”. Carlos mirava no chão uma pedrinha à toa, um cascalho de basalto, pouco maior que a ponta do dedo, em cuja face fendida via-se uma mancha no quase exato contorno do mapa da África. (AC)

Quisera eu saber ler as camadas do tempo geológico. O que para mim é um barranco, para o geólogo é um livro, cada página contando a história de alguns milênios. Para o especialista, uma penedia é uma enciclopédia, para os leigos, um enigma. Nós a vemos como quem não sabe ler uma partitura. Como um mistério.

"É, de algum modo, o martírio da terra, brutalmente golpeada pelos elementos variáveis..."
Euclides da Cunha
"Embaixo, o rumor da água pipocando sobre o pedregulho; vagalumes retouçando no escuro."
Simões Lopes Neto
Serra e estrada do Faxinalzinho, nos Aparados da Serra, ligando os territórios de Cambará do Sul, (RS) e Praia Grande (SC).

Mas o tempo não para na constituição material dos corpos físicos: nos báratros abaixo das fóbicas vertentes dessas escarpas, ali onde a pressão atmosférica é sensivelmente mais baixa, foram se formando longos vales esfuziantemente iluminados. Pelo sol da manhã, de um lado, pela luz da tarde, do outro. Àquele que os contempla durante todo um dia, diferentes paisagens vão se revelando: o lado das vertentes oposto ao sol é lúgubre e tenebroso, de uma cor escura que lhes confere um aspecto sinistro, conquanto de grande beleza. Contrastante com o lado sombrio, o lado oposto é iluminado e explode em alegria. As neblinas, nuvens baixas que se contempla do alto do platô, movem-se lentamente ou turbilhonam face às fortes correntes de ar. As árvores cintilam, suas formas densas de floresta contrastam com o aprumo das araucárias que povoam os campos do planalto. Um espetáculo comandado por deuses telúricos e povoado pela vida: diferentes ecossistemas, considerável diversidade biológica e climática: um ar temperado no alto do planalto e tropical no fundo dos vales. Por todo lado desponta a miraculosa e divina fonte de vida que é a água.  Pelo menos três bacias hidrográficas têm ali suas nascentes, repetindo um milagre como o das Águas Emendadas no Distrito Federal, de onde jorram as águas das três maiores bacias brasileiras.

Rio da profundeza do Itaimbezinho, visto a partir da Trilha do Cotovelo.
"Fazia uma ponta, tinha um sarandizal e logo era uma volta forte, como uma meia-lua, onde as areias se amontoavam formando um baixo: o perau era do lado de lá. O mato aí parecia plantado de propósito: era quase que pura guabiroba e pitanga, araçá e guabiju; no tempo, o chão coalhava-se de fruta: era um regalo!"
João Simões Lopes Neto
"Bosques e bosques acumulavam-se numa interminável aglomeração de tons, em que entravam todas as tintas da mágica paleta do divino artista, dissolvidas em fogo, essa cor primordial que nenhum outro pintor possui. O horizonte ardia em chamas, o céu rasgava-se, deixando transbordar em jorros uma cascata de luz que dava ao menor objeto da terra o brilho de um metal precios; as florestas cintilavam. Gigantescos paus-d’arco bracejavam por entre as árvores vizinhas para mostrar bem alto a sua coroa de  ouro; mas as palmeiras não se deixavam vencer e reagiam vitoriosamente por entre a espessura da mata, agitando no ar o seu penacho indígena; a gameleira brava procurava erguer a cabeça engrinaldada de heras e parasitas; pinheiros seculares, cedros mais velhos do que a religião, paineiras, angicos, perobas, todos os gigantes da selva pelejavam para sobressair! Uma luta silenciosa e terrível! Viam-se púrpuras que se rompiam de cólera, cetros que se despedaçavam de inveja! As tímidas plantas escondiam-se de medo e os lírios retraiam-se, estremecidos e assustados, procurando ocultar a candura de suas urnas embalsamadas atrás de rasteiros tinhorões e discretas folhas de begônias. Entretanto, o indiferente rio, em preguiçosos torcicolos, rastreava lá em baixo, franjando de rendas de prata aquela imensa túnica de veludo verde-negro, que a montanha arrastava, estendendo-a sobranceiramente pelo vale. Afinal declinou a luta: era a noite que vinha já, com seus dedos sempre molhados, a sacudi-los, orvalhando estrelas pelos espaços e apaziguando a terra debaixo de suas asas."
Aluízio de Azevedo

  Igualmente rica é a fauna: mamíferos como o lobo-guará, o veado-campeiro, o graxaim. O puma, após ter sido considerado quase desaparecido, vem ressurgindo, podendo suas pegadas serem vistas na lama das estradas pela manhã. Três espécies de aves ameaçadas de extinção ali estão preservadas: o gavião-pato, o gavião-pega-macaco e a águia-cinzenta, além de outras incontáveis espécies.

Pegada de leão baio (puma) na face norte do Fortaleza.
Perau do Itaimbezinho: araucárias sobressaem sobre a densa vegetação, até a beira do cânion.

Os Peraus

Quando não existem vocábulos correspondentes aos estrangeiros, novas palavras vão sendo assimiladas pelo idioma português. No entanto é injustificável o emprego de expressões exóticas, quando dispomos de uma infinidade de sinônimos. É o caso da denominação cânions para as formações geomorfológicas dos peraus. O que designamos como cânion, é um aportuguesamento do inglês canyon, talvez advindo de uma herança deixada nos estados americanos fronteiriços ao México pelos espanhóis que denominaram os despenhadeiros ali existentes com o termo castelhano cañon, cañones, sinônimo de desfiladeros. Um neologismo que se tornou popular ao ser aplicado ao íngreme desfiladeiro esculpido pelo Rio Colorado, o Grand Canyon.

* Na estrada, entre Cambará e Ausentes, apontei uma paisagem para Carlos: o campo e uma destas simples e elegantes casas de madeira da região. Ao que Carlos replicou: “metade do que é apontado é o dedo que aponta”. (AC)

O Brasil já possui uma grande sinonímia para denominar esses precipícios. O tupi-guarani chama os locais muito elevados e alcantilados de itaimbé, itambé ou taimbé, derivados de ita (pedra) e embé (termo que exprime a ideia de margem, beirada, rebordo, lábio). Outros interpretam o termo com o significado de pedra afiada, de ita + aimbé. Há ainda os que o traduzam como aquele que se contorce, também uma derivação de ita + aimbé.

O léxico registra mais de três dezenas de sinônimos ou palavras atinentes. Uma vasta sinonímia: abismo, abisso, alcantil, alcantilada, algar, báratro, barranco, barranqueira,  barroca, desbarrancado, esbarrancada, esbarrancado, esbarrondadeiro, faial, golfo, grotão, pavuna, pélago, perambeira, pirambeira, precipício, pego, profundez, profundeza, profundidade, profundura, quebrada, resvaladouro, ribanceira, sorvedouro, tragadeiro, tragadouro, voragem. Nem todos esses vocábulos se prestam com perfeição ao acidente geográfico gaúcho, mas na região de sua ocorrência no Sul do país, há séculos já são designados pelo nome, até hoje empregado pelas populações tradicionais locais, de perau.

"Numa enorme extensão dos plainos perturbados, via-se um ondular estonteador;
estranho palpitar de vagas longínquas; a ilusão maravilhosa de um seio de mar,
largo, irisado, sobre que caísse e refrangesse, e ressaltasse a luz esparsa
em cintilações ofuscantes..."
Euclides da Cunha

Existem peraus em todos os continentes. São paisagens abruptas, belíssimas e perigosas. Vales íngremes e profundos, que chegam a atingir até cinco quilômetros de profundidade. Associam-se junto de rios que vão esculpido as rochas ao longo de períodos de milhões de anos. Alguns desses cursos d’agua chegam a desaparecer, remanescendo apenas o indício de seus rastros pelos locais por onde passaram. A evolução desses despenhadeiros é ainda um enigma para os geólogos, que só podem trabalhar com hipóteses.

* “Veja, é uma terra friável”, observou Carlos ao vermos os caminhos desbarrancados entre os campos, onde assentava-se uma lavoura de monocultura a perder de vista.

Em geral, essas conjecturas levam em consideração processos internos como a movimentação e o soerguimento das placas tectônicas ao longo de milhões de anos, associados a processos externos, provocados por cursos hídricos, erosões eólica e pluvial que foram decompondo o modelado do relevo, criando desníveis entre essas ribanceiras verticais. Com o tempo e o decorrente aumento da declividade, vai-se acentuando o processo erosivo. Os leitos dos rios vão se tornando cada vez mais profundos; aumenta a velocidade das correntes; os vales vão se tornando mais fundos e os paredões mais altos.

"Acredita-se que a região incipiente ainda está preparando-se para a Vida: o líquen ainda ataca a pedra, fecundando a terra."
Euclides da Cunha
Vista do Itaimbezinho a partir de mirante próximo ao vértice do cânion.
Paredões do Itaimbezinho, que neste ângulo de visão chegam a atingir 720 metros de profundidade.

A Vegetação

As araucárias têm uma dominância quase exclusiva nas florestas do planalto. Ocorrem também trechos revestidos pela mata pluvial atlântica e entremeados pelos campos. Além da araucária, ocorre outra conífera, tão pouco conhecida e valorizada, o pinheirinho-bravo. Predominam aroeiras, o carvalho, a caúna, parente da erva-mate, dentre outras. Na mata pluvial atlântica, sobressaem a canela-preta, sapopema, guamirim-chorão, canela-fogo, figueira-branca, guapuruvu, angico, umbu, pessegueiro–bravo, sete-sangrias, canjerana, além de muitas espécies de quase vinte gêneros de mirtáceas, essa família tão bela e com tantas frutas comestíveis e tão belas florações como a goiaba, a gabiroba, o araçá, a jabuticaba e, uma das mais lindas, a feijoa ou goiaba-da-serra, de folhas prateadas e flores vermelhas. Nos dias em que ali permaneci, o toque de beleza mais atraente eram as quaresmeiras conhecidas por manacá-da-serra, com uma floração profusa, contudo com flores menores do que as do Sudeste.

Manacá-da-serra / arquivo do autor.

A criciúma ou bambu-trepador (Chusquea meyeriana), uma longa taquara com tufos de folhas em cada nó entre os colmos, emerge acima do dossel das árvores nas fímbrias das formações florestais, criando um curioso espetáculo visual. Lembra um boá de plumas. É pena que não seja usada em paisagismo, para pender de altas jardineiras. Dizem que dentro de cada colmo há uma água que, colocada sobre um ferimento, efervesce como se fosse água-oxigenada.

* Numa tarde, a fome batendo, paramos à beira de uma estrada para uma sapecada de pinhão. Carlos, em sua cadeira dobrável, a tudo observava com muita atenção, talvez incrédulo: Geni, Daniel e eu juntamos e entrelaçamos as grimpas secas dos pinheiros; sobre o monte despejamos os pinhões, sementes da araucária, trazidos de casa, por precaução. Ateamos fogo. Num instante os pinhões estavam no ponto, estalando, sapecados. Carlos, com os dedos pretos das cinzas dos pinhões, considerou aquela a refeição mais chique do mundo. Ao que concordei, graças à companhia de um vinho Tannat, sem rótulo, de seu Onorino Bianchi, sem dúvida o melhor do mundo também. Nos dias seguintes, repetimos aquele gesto – e sabedoria – ancestral. (AC)

No estrato herbáceo dos campos, predominam as gramíneas, as compostas e as leguminosas, estas duas sobressaindo também no estrato arbustivo, no qual, destaca-se o gênero Bacharis, cuja espécie mais conhecida é a medicinal carqueja (Bacharis trimera), além de muitas outras de grande potencial ornamental como o alecrim-do-campo (Baccharis dracunculifolia,) usado como medicamento e para fazer vassouras.

Há grande variedade de epífitas: bromeliáceas como Vrisea vagans, V. altodasserrae, Aechnea cylindrata, A. caudata e Nidularium innocenti; cactáceas como Rhipsalis haulletianam, R. elliptica, R. pachyptera; orquidáceas: Cattleya intermedia, Epidendrum elliptcum. Oncidium longipes, Pleurothallis grobii, Laelia purpurata. Trepadeiras como o cipó-buta, cipó-pau, unha-de-gato, cipó-escada-de-macaco, cipó-cravo, o incandescente cipó-de-são-joão. Aráceas dos gêneros Philodendron e Anthurium, muitas pteridófitas como samambaias, samambaias-açu e fetos arborescentes dos gêneros Alsophila, Cyathea, Nephaelea e a Dicksonia, que forma belíssimos fetais. 

 Essa última, uma samambaia arbórea cuja população foi inclementemente devastada para fazer vasos de xaxim. Duas palmeiras se destacam: o palmito-doce, cujas frondes emergem acima do dossel arbóreo, e a palmeira-gemiova. No estrato herbáceo dos campos predominam gramíneas, leguminosas e compostas. Muitas se destacam pelo grande potencial ornamental como o alecrim-do-campo. A maioria das plantas nativas que crescem em locais onde se pratica a agropecuária extensiva e onde se cultiva espécies exóticas como Pinus e Eucalyptus, estão sujeitas a desaparecer, pela destruição de seus habitats silvestres. Se fossem utilizadas em jardinagem e paisagismo, em muito se contribuiria para protegê-las de extinção.

Dentre essas, pode-se citar:

  • Colletia paradoxa: um arbusto de lento crescimento, que chega a atingir bem mais de dois metros e vive em ambientes áridos. Apesar de seu aspecto agressivo, suas ramas achatadas têm uma linda coloração verde-gris. As flores são brancas, agrupadas nos fascículos axilares, com a corola tubiforme e com anteras negras muito perfumadas. Seu aspecto muito espinhoso torna-a perfeita para fazer cercas-vivas defensivas de propriedades que não desejam a entrada de intrusos, pois dispensam o uso de arames farpados. Corre o risco de se extinguir, já que vem perdendo seu habitat, em consequência de exóticas invasoras.
  • Discaria americana: ocorre nas florestas de araucária e nos campos sulinos. É considerada espécie vulnerável em virtude das ameaças às localidades de sua ocorrência e a sua peculiar exigência de habitat. Qualquer jardim se orgulharia de possuir um ou mais pés desse arbusto, belíssimo quando em floração, com raízes de propriedades medicinais.
  • Angelonia interrima: ocorre nos estados sulistas e em   ambientes campestres da mata atlântica, do cerrado e dos pampas, mesmo em áreas já impactadas pelo homem.

* Ao observar uma pequena planta, Carlos cita Cecília Meireles: “Não tenha pena da pétala que cai; há beleza em ser este não ser.” (AC)

  • Blumenbachia insignis: uma planta hirsuta que cresce em fissuras de rochas, é praticamente desconhecida pelos brasileiros. Por possuir pelos que causam irritações, é chamada pelos ingleses, que a introduziram em seus jardins na Argentina desde 1826, de planta-do-choque-elétrico.
  • Ipheion uniflorum,: uma espécie da família das Amaryllidaceae,  muito pouco conhecida, apesar da grande beleza ornamental de sua profusa e deslumbrante floração. Seu nome vulgar é estrela-da-primavera.
  • Uma das famílias com as mais belas flores do mundo, as Iridaceae, têm no Brasil espécies já empregadas em jardins, como é o caso do gênero Neomarica. A serra gaúcha possui uma dessas flores de hábitos campestres, a Cypella fucata, de grandes flores amarelas e inegável beleza.
  • Outra Iridaceae que ocorre particularmente, no Rio Grande do Sul, é a Herbetia lahue, com flores de aspecto perfeitamente geométrico. É encontrada em grandes populações nos campos abertos dos Aparados da Serra.
  • Strenandium diphyllum: uma linda Acanthaceae, amplamente distribuída por todo o Sul.
  • Outra bela espécie é um cacto, Gymnocalycium denudatum, de ocorrência exclusiva no Rio Grande do Sul. Viceja solitariamente ou em grupos, em afloramentos de solos arenosos ou rochosos. Por ocorrer em pequenas populações, por ter seus habitats ameaçados pela expansão agrícola e por constituir um alimento muito procurado por caprinos e ovinos, sua população vem decaindo consideravelmente. A espécie já é considerada em perigo. A planta possui uma brilhante coloração verde-escuro. Os espinhos são curvos e apresentam uma ligeira torção. As flores são brancas ou levemente rosadas.
    • Pelos campos crescem muitas margaridinhas, como:
      • Crikscia stricta, de cor coccínea, que embelezará qualquer jardim onde for cultivada. Se fossem feitos híbridos dessa espécie, poderia tornar-se ainda mais apropriada como flor ornamental para o paisagismo.
      • Schlechtendalia luzulifolia: assemelha-se a um dente-de-leão, diferindo pelas flores de forma esférica;
  • Mesmo plantas muito comuns em todo o país, vicejam na região, como a leguminosa chocalho-de-cascavel; no sul ocorre a espécie Crotalaria tweediana, de rápido crescimento. Além de uma bela floração, é um excelente adubo vegetal, prestando-se à  fixação de nitrogênio ao solo, além de prestar-se ao controle de nematóides nocivos do solo, que atacam as plantas de jardins e hortas. Enfeitam todas as estradas da região dos Aparados da Serra com suas flores amarelas e seus frutos que, quando sacudidos pelas crianças, produzem um som semelhante ao chocalhos das cascavéis.
  • Dentre as plantas que mais me fascinaram em minha estada nos Peraus, assim como onde quer que ocorram, foram as araucárias, com suas silhuetas em forma de umbela destacando-se de forma única na paisagem brasileira, parecendo uma taça ou umbela. É triste saber que sua área de ocorrência original, de 200 mil km² foi reduzida a uma parcela diminuta. É considerada em alto perigo de extinção.
Araucárias em diferentes composições das paisagens dos Aparados da Serra, no território de Cambará do Sul (RS). / Fotos Daniel Herrera.
Araucárias de feições centenárias, com troncos e copas de grandes dimensões, desenham o topo dos abismos do Itaimbezinho.
  • Foi nas montanhas da Serra do Mar que pude ver, pela primeira vez, uma Gunnera em seu habitat natural. Como receava não vir a conhecê-la, acreditando que ela só vicejasse em inacessíveis paredões de basalto.  Quando a vimos à margem da linda estrada da Serra do Faxinalzinho, nas cercanias do Itaimbezinho, que alegria! Pedi para parar o carro e descermos. Ali, Daniel fez uma fotografia minha com as Gunnera ao fundo, talvez a melhor de todas as fotos que tirei até hoje. Medimos a folha mais desenvolvida de um espécime, com um metro e setenta de diâmetro. No entanto, por incrível que pareça, há casos de exemplares criados em estufas na Irlanda, que chegaram a medir mais de três metros. Conhecida vulgarmente como ruibarbo-gigante, urtigão ou guarda-chuva, algumas espécies são empregadas em medicamentos e na culinária, cruas ou cozidas, em pratos salgados ou doces, em seus países de origem. Muitas outras espécies de grande beleza ornamental cresciam à orla da estrada, no entanto, a Gunnera, a todas ofuscava.

* Na descida da Serra do Faxinalzinho, no ventre dos Aparados, paramos o carro subitamente. Era o primeiro encontro de Carlos com a Gunnera. Ele desembarcou e apressou o passo, confiando no cajado de guamirim, apesar do chão irregular da estrada de basalto. Ao ver a encosta, tomada pelas Gunneras, disse para si mesmo outro segredo que os fones de ouvido trouxeram-se: “acho que o mundo está doente por causa dos nossos olhos”. (AC)

A gunnera, na Serra do Faxinalzinho: “ali, Daniel fez uma fotografia minha com as Gunnera ao fundo, talvez a melhor de todas as fotos que tirei até hoje” – escreveu Carlos Delphim.
  • Também me chamou a atenção um dos vegetais mais presentes na paisagem dos peraus, os líquens, um tipo de organismo formado pela associação de fungos e algas. Possuem uma acentuada resistência a todo tipo de clima. Suportam extremos graus de umidade e de temperatura. Podem crescer sobre o solo, rochas nuas, árvores, em desertos e no gelo, até sobre metais, desde que seja em ambientes sem poluição. Um líquen semelhante a musgos, que a nomenclatura científica identifica como Cladonia substellata é que confere beleza às rochas, pedregulhos e penedias dos Aparados da Serra e de toda a região. Graças à coloração branco-cinérea-prateada que as caracteriza.
Os líquens, que dominam as faces de basalto do peraus dos Aparados; suportam extremos graus de umidade e de temperatura.
  • Há dois líquens onipresentes na paisagem local, a um dos quais os gaúchos denominam barba-de-velho (Usnea barbata). Há outro, chamado barba-de-pau, de coloração sulfúrea e levemente esbranquiçada. Ambos se dependuram por árvores, cercas, mourões, arames farpados, conferido uma feição de abandono às paisagens, sem ostentar o ar lúgubre da região pantanosa de Everglades, na Flórida.
"A terra atrai o homem; chama-o para o seio fecundo; encanta-o pelo aspecto formosíssimo; arrebata-o, afinal, irresistivelmente, na correnteza dos rios."
Euclides da Cunha
"Vi a colmeia e o curral; vi oi curral e o rebanho; vi as serras, os rios, a campina e as cidades."
João Simões Lopes Neto
Líquem Usnea Barbata, “barba de velho” na linguagem corrente dos gaúchos.

Unidades de Conservação

A legislação que criou as unidades de conservação no Brasil inspirou-se em modelos de países com uma natureza muito menos rica e diversificada do que a brasileira. Tudo partiu da   criação do Parque Nacional de Yellowstone nos Estados Unidos, em 1872, um marco na defesa dos recursos naturais contra as atividades humanas degradadoras e também na dissociação entre homem e natureza.

Existem parques criados com as mais diversas finalidades, como, por exemplo, para fins científicos. Todas, contudo, excluem o homem, privilegiando a biodiversidade e excluindo a pluralidade cultural, tão importante quanto a diversidade biológica. Dois conceitos que se complementam. Cada povo, cada comunidade detém fazeres e saberes decorrentes das diferentes expressões culturais existentes na sociedade. Cada um possui valores, formas de apreender o mundo, de entendê-lo, determinando diferentes maneiras de agir, sobretudo no uso dos recursos naturais, no folclore, na culinária, na música, em festejos e outras manifestações. Populações tradicionais que vivem em áreas protegidas pela legislação ambiental são deslocadas dos ambientes onde sempre moraram, suas propriedades são desapropriadas, são indenizados de forma insuficiente. Os que aceitam, transferem-se para as cidades.

* “Toda ação é uma violência”, disse Carlos, em certo ponto de nossas andanças pelos Aparados, citando um poeta – talvez Rilke? (AC)

Ocorre que nem todos exerceram um uso danoso dos recursos naturais. Graças a eles, as terras preservaram a integridade que justificou sua declaração como unidade de conservação. Por que então expulsar quem, melhor do que qualquer burocrata, acadêmico, vigilante, ou qualquer servidor público ou terceirizado, conhece, preserva e se utiliza da natureza? Uma família que abandona o entorno de um parque nacional cuidava melhor dele do que uma grande quantidade de vigilantes. Poucas pessoas acorrem às casas desses moradores tradicionais. Todavia, uma unidade de conservação substitui esses ex-proprietários por dezenas de guardas florestais, guias, grupos de visitantes, pesquisadores – que se utilizam de seus saberes tradicionais para elaborarem dissertações e teses que ninguém lê, muitas vezes sem revelar a fonte e os créditos de seus verdadeiros orientadores. Isso porque a abertura ao público provoca um impacto incomparavelmente mais forte do que as famílias que ali vivem podem provocar.

A vocação natural dos terrenos da região não é a agricultura intensiva. Terrenos acidentados e planícies, impróprios a práticas agrícolas convencionais, são roçados e nivelados. Atividades predatórias se encarregam da extração e comercialização de lenha, madeira, palmito, plantas de valor medicinal ou ornamental, pequenos mamíferos e outros animaizinhos, aves, passarinhos, peixes.