COSMOGONIA do Abismo
Carlos Delphim

Todo símbolo tem uma carne, todo sonho uma realidade

                      O. Milosz, citado por Gaston Bachelard em A Terra e os Devaneios da Vontade.

Ao redigir seu ensaio sobre os Aparados da Serra, intitulado Fora, dentro, além do peraus, Carlos Delphim enviou a introdução que segue. Observou, entretanto, que avaliássemos o seu uso na edição dos conteúdos. Eis aqui, pois, o texto, não apenas como preâmbulo ao parecer principal, mas como um ensaio de vida própria – uma inédita e vertiginosa cosmogonia do Aparados, na visão do autor.

Aparados da Serra

Carlos Fernando de Moura Delphim

Horripila-me a terrível cena que fez estremecer o universo. Uma cena de amor entre o que é eterno, sagrado e transcendente, e a caótica substância que se materializou, predestinada a dar origem à Vida.

O Dia conta sua história: O Céu olha para a Terra, a fêmea de profundezas inatingíveis e de superfície sem vida. Arde de desejo por seu corpo, quer fecundar seu ventre e ela, impassível, não o estimula. A volúpia, quando não é saciada, deixa o macho atormentado, agressivo. Quanto mais a fêmea se mostra serena e indiferente, mais ele se inquieta. Impossibilitado de adentrar suas entranhas, tanto mais ele se agita, mais se torna possessivo. Enfurecido, enlouquecido, descarrega seus raios sobre os pontos mais sensíveis e sedutores do objeto de seu desejo, o planeta, totalmente indiferente a seus apelos. Eis que, sob tamanha pressão, um cataclisma faz o corpo da Terra tremer, rugir, fender-se ao meio, desvirginando-se e se tornando pronta a receber a semente que a fecundará. O mundo, como se estremecendo em um paroxismo, vê o sol desaparecer do céu e a lua surgir. As forças então se acalmam, a brutalidade se dissolve, a bestialidade carnal se arrefece: a Terra, sua carne inteiramente estraçalhada, se deixa aquietar por nuvens e ventos suaves anunciando a Noite. Exibindo as cicatrizes desse orgasmo, os altos paredões dos peraus, anavalhados e a fêmea, já fecundada, vai aos poucos sendo ocupada por rios, por florestas, pela vida.

A Noite conta sua história: A Terra olha para o Céu, o macho das alturas insondáveis, sem densidade, sem corpo. Exibe-lhe o corpo maciço e compacto, aspira a ser adentrada pela etérea e incorpórea transparência de cerúlea coloração. Entreabre-se, deixa-se traspassar pela imaterialidade celestial, por um simples alento. Pesa-lhe ter um corpo, aspira ao etéreo. Seu ventre aguarda ser fecundado, sua carne se abre revelando entranhas jamais dantes contempladas. O sol, do zênite, lança mil raios nas profundezas desse imperturbável e tenebroso mundo que estremece, sentindo-se despedaçar. Uma luz de ouro vai aos poucos, penetrando e iluminando a escuridão das vísceras recém rompida. Cada átomo luminoso despenca do céu como uma semente a gerar vida, embrenhando-se por cada orifício dos rochedos, por cada vão, cada interstício das negras rochas.

Entre tantos locais do planeta, esse ato cósmico escolheu um ponto de uma serra, a Serra Geral, uma formação rochosa com altitudes em torno de mil metros. As paisagens dessas paragens, após a fecundação cósmica, foram se formando e adquirindo a atual feição há milhões e milhões de anos, por séries e séries de derrames de lava. Lá em cima, o planalto ornado por matas de araucária e campos limpos, que, de repente, sem qualquer sobreaviso, faz a paisagem se romper. As suaves ondulações das coxilhas e dos campos dobrados despencam subitamente, formando desfiladeiros de rochas basálticas, com paredões verticais de até noventa graus. Ao se abrir, a negra e dura rocha se divide em paredões verticais que resguardam, lá embaixo, a planície litorânea. Das paredes a pique se pode contemplar, no horizonte, o mar.

Fecundada pela união da luz com as trevas, a Terra passa a exibir, de forma prodigiosa, lá no fundo do abismo, a água de rios cristalinos que vão brotando e descendo em direção ao mar por estreitos vales. Ao longo desse percurso ladeado pelas paredes abruptas dos Peraus, vão irrompendo matas esmeraldinas, milhares de espécies vegetais vão germinando, crescendo, florindo, frutificando, lançando sementes pelos ares. Outros mil seres comparecem, cada qual escolhendo as flores quem o alimentarão, que polinizarão. A Vida é um ato de adoração.

Para o Universo, a mais minúscula unidade de tempo em nada difere da incomensuravelmente maior. Uma infinitésima medida de espaço é idêntica à infinitude. Para nós, seres de breve duração, é impossível imaginar quanto tempo é exigido para a formação de uma paisagem. Nossos crânios, pequenos invólucros de cérebros ainda menores, têm a capacidade de entender grandezas cósmicas muito limitada. Já, nossa imaginação, possuem asas que lhe permitem esvoaçar por onde queira, fora dos limitados recipientes ósseos. Se a razão esbarra em fronteiras físicas, a imaginação ultrapassa essas divisas, permitindo-me fantasiar sobre a origem dos Aparados da Serra.